quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Querido diário,

Quando eu era criança sempre via uma imagem em um livro de ciências de um grupo de girafas. Na imagem as girafas se alimentavam dos frutos de uma árvore, mas uma girafa específica não alcançava os galhos mais altos para comer, porque seu pescoço era menor que o das outras. E então a girafa morria.

Não sei porque aquilo me deixava tão pensativo, afinal, é o mundo animal, ninguém se importa muito com o outro, mas eu era criança e não sabia disso, só queria que alguém ajudasse aquela pobre girafa. 

Então cresci, e ontem, enquanto andava na rua, lembrei dessa girafa e pensei: por que as outras não a ajudaram, por que a deixaram morrer? Ela era tão frágil, coitada.

E foi aí que eu percebi que eu era ela. 

domingo, 26 de setembro de 2021

Querido diário,

Foi em um sonho que eu disse a ele que o amava, mas quando acordou, logo esqueceu.
Não vos digo meu nome, pois é comum e logo esquecereis. Tampouco escreverei de modo coloquial, sou uma farsa. 
Não me convides para entrar em tua casa, pois jamais sairei. Sou como uma mancha de graxa num tecido branco que, dias e dias de molho, fede.
E não tentes me comprar com bijuterias falsas, por mais que eu saiba meu lugar, não mereço ser tratada como lixo.
Me enrosco em minhas mentiras e acredito nelas, pois são verdades para mim. Minto que sou bonita e minto que sou tua, mas minto mais ainda quando ouço-te dizer que me amas, porque não dizes, eu invento tudo, tenho imaginação fértil. Crio a mim mesma, porque sou invenção de alguém insone, mas existo sim em algum lugar do mundo, escondida invisível debaixo de uma mesa, como um rato em busca de migalhas no fogão, assim me escondo de tudo, pois sou irreal.
E quando digo tudo isso, evito ao máximo chegar no que quero dizer, e o que quero dizer é que eu te disse, mas você não me disse de volta, e o que não foi dito? Óbvio que não direi.
Cala-te! Cala-te! Bato em minha cabeça com o punho cerrado, esmagando uma carta inacabada, uma carta endereçada à ti, ó grandioso amor de minha morte, que és tão forte que matas o rato, o gato e o homem.
Na garganta dor e saliva escorrem e empurram de volta as palavras que quase saíram, e rezo em prantos, pois não rezava há anos, e nas minhas preces, silenciosas, pois estou muda, eu peço paz e distância do sofrimento em que me encontro nesse exato momento.
Então deito a cabeça em um travesseiro fino e fecho os olhos em busca de sossego e te vejo caminhando em direção ao mar, e és bonito, alto e forte. Me mandas um beijo e eu desmaio, não desmaio de verdade, apenas finjo, porque sei que gostas, porque assim me seguras. E quando te peço para que me esqueças, não é verdade, o que quero é que me leves para sempre em teu peito, em tuas memórias, pois quero sempre estar contigo.
E tu quem és? Não sei. Também não sei quem sou, mas me despeço de mim e de você, dizendo aquilo que te disse em sonhos, se é que era mesmo você.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Querido diário,

Eu servia o prato. Ele deixava restos. Eu queria comer tudo, até roer os ossos, como uma loba faminta, triturar o que ele deixou para que assim pudesse ter algo dele em mim.

Queria ter o cheiro dele em mim, queria ter o toque dele em mim. Queria sentir o peso dele em mim. Queria que ele me matasse.

Ele sentava à mesa e pedia frango cozido. Eu derramava um pouco de lágrima no caldo para que ele sentisse a minha dor, para que ao ingerir um pouco de mim, ele me quisesse, mas ele não queria. Ele nunca quis.

Eu rastejava até ele como uma moribunda, como se ele fosse o calvário, que me prenderia a cruz, que me levaria ao céu, mas ele só me apedrejava.

E uma melodia triste ecoava em minha mente, alternando um gemido de dor e a vontade de ser dele.

E quando ele não deixava restos eu quebrava o prato, eu pegava um caco pontiagudo e cortava a minha pele e gritava como louca no chão gordurento da cozinha, e todos viam e não sabiam o que fazer, mas ele não via, ele não se importava. E eu cortava os cabelos até ficar calva, e depois ficava muda, estátua, e as pessoas vinham até a mim e eu as mordia, porque não queria toque, não queria ser consolada, só queria ficar triste.

Sentada no chão sujo eu me enrolava em mim mesma, para me asfixiar, eu sou uma cobra sem veneno, eu sou uma mosca que o ronda, mas ele me espanta, ele me esmaga.

Um dia eu disse que quando ele viesse eu o diria que o queria, mas ele não veio, porque ele sabia do meu plano, e eu esperei na porta, e choveu muito, eu congelei de frio, e fez muito sol, eu me queimei.

Me tornei um pedaço de osso roído, ignorado por formigas e vermes, um osso oco que só espera o tempo o dissolver.

Perdão, perdão, eu não queria escrever isso.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Querido diário,

Existem dias que me assustam e me entristecem, mas acredito que com todo mundo seja assim, não é mesmo?

Quando olho para minha vida e reflito sobre minha trajetória, sinto orgulho e tristeza, mas a tristeza sempre esteve comigo, então não a considero ruim: a considero uma amiga. É por causa dela que eu tento mudar e prosseguir em busca dos meus objetivos de vida, e é também dela que uso o estepe para meu caminhar.

Uma vez um amigo me disse que eu tinha medo de ser feliz e aquilo me doeu porque senti que era verdade. Ando refletindo muito sobre minhas amizades, sinto que busco apoio em ombros que se afastam quando eu necessito me apoiar e, por isso, caio, mas creio que não deveria ter depositado total confiança no apoio do ombro e sim caminhar só. Já caí muito e por vezes esqueço dos tombos, eles doem, embora tenho certeza que em alguns momentos eu preciso cair e me levantar ferido, porque só assim me curo.

De noite rezo, e assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, já peço que livrai-me do mal

Amém.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Querido diário,

Sob a mira da arma de um homem, você não é nada. Você é apenas um momento, um mero movimento de um dedo indicador define seu fim, ou início, dependendo do ponto de vista. E qual o ponto de vista que melhor te ajudaria nesse instante, nesse súbito reconhecimento de vida, Deus? 

É assim que você reconhece sua vida, é ali que você sabe de verdade quem ama, quem você quer para sempre, as melhores memórias e os planos pro futuro, é na hora da morte que você reconhece a vida, as pessoas que você conheceu e as pessoas que você deixou te conhecer.

Há vida na morte, a sua, que se vai ou se vive melhor depois, sempre o depois, mas e o agora? O agora existe? O agora é mesmo agora ou já virou passado? É sempre futuro, vivemos no futuro, e se o futuro é a morte, na mira da arma de um homem você morre. 

Boom!