quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Querido diário,

Enquanto as árvores iam sendo esticadas pelo movimento do carro e a paisagem da janela deixava um rastro fino de ilusão por onde percorria, ele teve um enorme impacto com o existencial. Ocorreu a ele pensar que talvez fosse feito de imaginação, que estivesse sendo criado por alguém, como um personagem. Indagou-se sobre o uso de cannabis, mas sabia que a tempos não fumava, então permaneceu enfrentando a própria realidade enquanto o verde da mata corria veloz.
Tentou recordar de sua infância, mas as lembranças iam aos poucos se distorcendo com as histórias que ele lia (ou escreveram que ele lia?), e enquanto contavam sua história, deste devaneio insano de um dia de julho, ele queria nascer (ou morrer?) e ter sua própria versão da história da sua vida, passar da terceira pessoa para a primeira assim como num salto: já não sei quem sou.
A estrada me causa sentimos mixados entre nostalgia e tristeza, embora a nostalgia sempre carregue um pouco de tristeza e é normal, eu sei, todo mundo sofre, mas não é isso o ponto x da questão. O ponto x da questão é que eu não sei de mim, não sei se sou real, se sou invenção, se o que falo agora ou escrevo vem de mim ou de alguém que escreve por mim e me cria.
Se sou real não lembraria do meu nascimento, e não lembro, mas será que não lembro porque é natural do ser humano esquecer de memórias tão antigas ou se é porque o meu criador, assim dizendo, não quer que eu lembre?
Lembro do meu primeiro amor, do primeiro filme que vi no cinema, da sensação de chorar quando perdi um familiar e da viagem que eu fiz para o interior da minha avó.
Se sou eu quem crio minha existência, se nada for premeditado e destinado a ser, então gostaria que este texto não fosse mais meu. Entrego-o a outro alguém que escreva por mim.